Uma Longa Temporada no Incerto


Por Anielson Ribeiro

Me sinto antigo e turvo. O passado se ergue como uma noite dentro da Noite. Quanto de juventude cabe nesse vórtice e em sua fome infinita a que chamamos memória? Há uma cidade por trás da noite: a cidade dos mortos. Sinto seu olhar colossal a me espreitar. Sinto seu estômago nervoso roncando. Aqui dentro, parece que tudo foi quebrado. Minha linguagem está perdida. Por isso, não há como convocar a ajuda necessária para me fazer entendível. Só quero que saibam que é noite e faz frio lá fora (coisa rara nesse sertão baiano). Eu sei que parece um convite, mas é uma armadilha. Como um gato faminto observa o pássaro. Às três da tarde, recebi uma chamada, lembro que falamos sobre o clima, e era mormaço. Agora essas nuvens e essa brisa fria. Sinto um pigarro. Minha garganta coça. É um turbilhão de frases de emancipação exigindo escarro. Minha laringe é uma estrada ligando-se à cidade dos mortos insepultos dos Palmares, dos Kaiowas, dos realocados e dos trabalhadores da represa de Sobradinho, dos camponeses de Eldorado dos Carajás, da ditadura empresarial-militar, inclusive minha mãe e meu pai, ainda que vivos, mas todo mundo morreu um pouco naquele tempo. Vocês me entendem? Ou o gato comeu minha língua?

[Estive pensando no texto que Marinalva Gama escreveu sobre o atravessamento e o carpe diem. Tenho visto como estamos cada vez mais ligados à instantaneidade e ao imediatismo capitalista. Isso cria algo de imobilidade, não só no sentido político, mas também na esfera dos afetos. Estamos numa era de desacoplamento temporal. Concebemos nossa temporalidade como uma estrutura que simplesmente esteve aí sempre. Tatuamos frases em latim sobre viver o momento, mas a questão é que não o vivemos, não o experienciamos. Ele está aí, nós caminhamos sobre ele, no entanto, não o alteramos, não participamos. É como a máxima de Rimbaud: "não creio no inferno pois estou nele". Não entender o passado se traduz na nossa incompressão do contemporâneo, no desconhecer-se de si e de todos os processos que o trespassam. Heidegger dizia que o Ser está em relação ao tempo, não dentro dele. Isso possibilita participação efetiva, pois devorados pelo tempo não sentimos suas entranhas se moverem, bem como não sentimos o movimento de rotação da Terra sob os nossos pés. Por isso, eu quero estar inteiramente partido neste momento, nesta cidade obscura, sem fuga via Arcádia, sem bucolismo].
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[atravessamento]
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O ontem me mastigou completo. Estou destroçado, aqui, sobre essa corda bamba. À frente, atrás e aqui, tudo o que há é tempo, esgotando o meu cigarro e esse pulmão de papel. Estou atravessado de um lado a outro. A única preocupação é em que dimensão irei cair: no aqui-agora. Nunca saí do lugar, mas sinto nas costas as dores da queda. É dia. Todos os relógios estão quebrados. Não há necessidade de fotos. Porque isso não é o presente. Estou eterno. Carpe diem. Num estado paralítico. É dia. E ele deve ser aproveitado. É dia. Não é segunda nem quinta: é dia. Mas esse dia eterno tem outro nome escondido, esquecido, que não quer ser lembrado. Dar nome é atribuir significado, especifidade predicativa. Isso pode ser perigoso. Sejamos pragmáticos, instantâneos. Apenas trabalhe; vire a noite estudando enquanto eles se divertem; se divirta, a vida é uma só; aproveite a promoção; não crie expectativas: o passado está morto, o futuro não existe, só existe o hoje. Que entidade roubou nosso sono e imaginação? Que sistema político-econômico assumiu a forma ético-religiosa da Eternidade, enquanto nos assombra com a temeridade do amanhã, com a fantasmagoria de ontem e bloqueia todas as saídas? Qual nome atribuímos àquilo que nos colapsa e exige resiliência? Como quando dizemos "hoje foi um dia terrível, fila em banco, pagamento de contas de água e luz na farmácia, hora extra no trabalho, perdi o ônibus, mal tive dinheiro pra voltar de Uber." O que chamamos de hoje é a instantaneidade do capitalismo tardio. Temos o nome, e os ponteiros retomam o movimento. Assisto ao crepúsculo das ausências. A noite empurra o amanhã contra o dia pútrido. (Des)carpe diem!

[Thomas Hobbes, no seu Leviatã, afirma que "o futuro é uma ficção". Esse tipo de pensamento era a base de uma concepção temporal linear. Friedrich Nietzsche supunha acreditar o contrário: numa concepção circular de tempo, representado por Ouroboros (a serpente que morde a própria calda). Para o filósofo aristocrata e reacionário, tudo que se realizar retornará eternamente. Isso, além de ser um reconforto para o niilismo juvenil, nada mais é que a mesma causalidade do tempo linear, só que curvada por certo refinamento metafísico. Quem, para mim, teve a concepção de tempo mais radical foi um jovem alemão, judeu religioso e marxista: Walter Benjamin. Para ele, o tempo não é linear nem circular, o tempo é completamente estilhaçado. Sendo que os acontecimentos históricos não são ordenadamente concatenados, e sim messiânicos, i. e., o tempo pulsa, se contrai em sua espessura enquanto as nossas novas palavras são atravessadas pelas vozes dos que já emudeceram].
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[atravessamento]
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Às vezes, me vejo amedrontado por uma perda. Às vezes, me vejo com a felicidade de estar ao seu lado, tomando um café na tarde quente. Às vezes, me vejo morto no mesmo deserto onde deus foi gerado e chorou. O que são essas visões? Futuros. É nessa tessitura espaço-temporal que residem meu casamento, minha vida solitária, minha família, meu mestrado, a separação, a reconciliação, a hipótese comunista, minha voz de morto encontrando transreverberação em alguma boca que saberá gritar rebeldia. Futuros. Não como certeza - unidade preenchida de limites -, mas como vislumbres do Reino do Possível. Instabilidade. Caminhos que cruzamos sobre as ruínas do tempo de agora. Bifurcações. Cada futuro como tensão Singular que brota no Absoluto do hoje saturado. Abertura. Como atos, eventos, acontecimentos. E todo acontecimento é o ponto de desequilíbrio em que o tempo implode a eternidade. Kairós. Como falsos messias que se reafirmam enquanto sinais do desconhecido. Falsos e, ainda assim, crucificados. Atravessados por todos os lados. 

A semântica de nossa temporalidade deve ser produzida, assim, nesses vasos comunicantes: o futuro como possibilidade, o passado como moção de experiência e o presente como saber de si, como práxis, como antissíntese dialógica do tempo. Transicidade. 

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