Essa não é uma crítica à filosofia vegana

Imagem: @tiagosantannaph /@aylavicc | Foto/reprodução: @ogumsetelancas 

Estou dividida entre dizer que não concordo com a romantização do sofrimento, reforçado através da figura de Jesus e sua paixão, fato que alcança o auge nessa semana; e dizer da filhadaputagem que é um vegano combatendo o uso de animais em rituais das religiões e matriz africana. Tudo isso parece distinto e não condensado, mas, na minha cabeça é uma lógica que funciona como uma faca de dois gumes. A gente fala de classe, dominação, direito e silenciamento de uma coisa só.

Essa não é uma crítica à filosofia vegana. É um puxão de orelha em uma parcela de veganos que quer reduzir a um mesmo patamar os rituais religiosos - principalmente das religiões de matriz-africana - e a exploração animal capitalista. Uma e outra são distintas e, combater a presença de animais em ritos religiosos é tão violento quanto estimular a industria da carne.
Essa não é uma crítica ao processo de ajuntamento e luto dos fieis católicos. Mas uma questão que me coloca em tilt: segundo o credo, Jesus fez o sacrifício humano e desceu à Mansão dos Mortos para pegar na mão de Adão, primeiro homem, e dizer: "Acorda, tu que dormes!" Ao final dessa semana, os católicos cantarão aleluia e celebrarão o que eles acreditam como vitória sobre a morte. Legítimo. Acho até fofo, pois acredito que, nesse processo, existe uma busca de purificação.
Mas o que penso é: durante a sexta alguns vão se abster de carnes de animais de sangue quente, outros vão se abster de alimentar-se, outros vão fazer algum pequeno sacrifício com a alimentação... São muitas possibilidades para listar. Mas no domingo de páscoa, a grande maioria vai celebrar, em um banquete, a vitória do seu Cristo comendo algum animal. Então me pergunto: essa celebração também não é uma extensão ritualística? E me respondo que é. Então por que o peru, o boi ou o frango na mesa católica não é tão problematizado quanto os animais usados em rituais do candomblé?
A resposta pode parecer simplista, radical ou exagerada, mas se pensarmos juntos, talvez a gente acesse: racismo estrutural. Preconceito de classe. Intolerância religiosa.

Eu entendo como legítimo o processo de crer. E, sobre o sofrimento de Jesus, eu gostaria de uma avaliação pessoal sem a necessidade do sofrimento romantizado, sem culpa. Para mim, mesmo que seja inevitável, as pessoas não precisam sofrer. Se a gente fosse ético, regulasse o caráter... Ok, ainda haveria sofrimento, mas... Por que justificar o sofrimento como uma questão a se passar para atingir algum lugar, algum nível espiritual ou de maturidade? Isso foge à minha compreensão. O meu credo é que a gente não precisa sofrer voluntariamente por coisas provocadas. Mas, muito mais do que o sofrimento metafísico religioso, me preocupo com o sofrimento do povo preto que está sendo romantizado. Sabe? O sofrimento que a gente não precisa viver. Por exemplo, o pai sendo assassinado a 80 tiros depois de passar perfume para ir ao chá de bebê. Ele era preto. Deus tem algo melhor diante desse sofrimento e desse martírio? Eu não sei. E o do povo da casa de terreiro que tem que se proteger e esconder a oferenda porque Iemanjá, naquele dia, queria peixe? Porque Martin gosta de um peixe marinado no limão? Os católicos farão procissão do Jesus morto na sexta. Nada escondido. Eu não vou discutir o que não entendo com as entidades, mas vou perguntar porque eu não entendo. E meu credo é que é necessário entender.

Preciso entender porque, ao falar do sacrifício de animais em rituais religiosos, a ceia do domingo de páscoa não está inclusa.Quero entender o porquê de a grande maioria ter dificuldade até de legitimar como religião o candomblé e a umbanda (a igreja católica só reconhece como religião algumas igrejas protestantes, o resto é tudo ceita).

Alguns veganos afirmam que não estão olhando para uma religião específica, mas para todas. Alguns veganos estão realmente engajados em nos fazer perceber que o mundo não deve explorar animais. Eu não tenho acesso e domínio para falar da filosofia em si, mas, que tal seria se a superação do consumo de animais viesse através de outro instrumento que não o da intolerância religiosa? Que tal seria entender que, mesmo que existam veganos no candomblé, as entidades muitas vezes não são? Crisprina ama doces, Cosminho também. Martin troca chocolate e bombom por pitu e um peixe assado na brasa. Fazer o que? Gosto é gosto. Qual a dificuldade de entender que o real inimigo vegano é a industria e não os ritos religiosos? Ou qual a dificuldade de entender que existe um combate seletivo dentro do campo religioso, o qual condena os terreiros mas não condena a páscoa católica? Porque nós sabemos que a primeira imagem que se forma na cabeça quando se diz do uso de animais em ritos religiosos, é a de um terreiro. A gente não lembra da páscoa. Porque nós sabemos que quando a gente imagina o tráfico de drogas, a primeira imagem que vem na nossa cabeça é de um menino preto com fuzil fazendo repasse, mas a gente esquece que tem um helicóptero com toneladas de cocaína pilotado por um branco. Porque a gente sabe que matar um animal não deve ser fácil (particularmente eu não tenho habilidade emocional e motora para isso), mas a pena está destinada à morte do animal que é consumido pelas entidades e pela comunidade dos povos de terreiro, esquecendo que o peru em nossa mesa está morto, rs.

Tem um desejo profundo em mim que é a construção de uma sociedade com mais amor e caráter. A você leitor, credor ou não credor, vegano ou não vegano, eu desejo ética, contexto e empatia. Essa é a principal falta no diagnóstico de uma sociedade que deu um cheque em branco na mão de Bolsonaro, o cara que reconhecidamente não nasceu para ser presidente desse negócio aqui, mais conhecido como Brasil.


"Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres
Anel no dedo em cada um dos cinco
Vento na minha cara eu me sinto vivo
A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues
Eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de Blues
É isso, entenda
Jesus é blues
Falei mermo"
Bluesman, Baco Exu do Blues

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