CORPO-MANICÔMIO

Se pensarmos nas limitações que são impostas aos corpos, e cito aqui a conjunção física-biológica-psicológica - pois essas dialogam ininterruptamente, compreenderíamos como fazemos desse instrumento de sobrevivência um espaço de lógica manicomial. Podamos os sentidos, as experiências, os sentimentos… Vivemos no dualismo cartesiano, onde as questões ou são da alma ou pertencem à matéria, quando na realidade há uma interação onde muitas vezes não se pode dizer quando uma começa e outra termina. Já na infância, nosso primeiro meio comunicativo é altamente taxado como irritante: o tão famoso choro é sempre estereotipado de birra, é um comportamento aversivo que designa muitas vezes punições, aqui podemos refletir sobre como olhamos para a criança, como agimos verbalmente e quando estamos olhando de fora, voltamos toda revolta à mãe. A primeira mordaça é posta. Choro é fraqueza. Choro deve ser um evento privado. Segure as lágrimas.Ainda nessa fase, quando se é do sexo feminino, as podas tomam as primeiras formas, vão perpassando em comportamentos básicos: o modo de sentar, o modo de rir, o tom da voz.Pensando na perspectiva da raça, não é permitido demonstrar fraqueza. As brincadeiras são cerceadas, a violência dilacera a fantasia, o medo da morte, o constante medo de não existir. A mordaça do choro. A mordaça da fala. A mordaça da imaginação. A mordaça da mordaça. Não é possível dizer o que se sente, não é possível descrever o que se imagina. É um corpo que conhece o silêncio. É um silêncio que trava o corpo.
Imagem do filme "Nise: O coração da loucura".

A mídia dita o padrão, empurra os transtornos alimentares, os produtos químicos. A castração de um corpo que não dança. A castração de um corpo que não se conhece. Existe um jeito de dançar. Existe um jeito de sentir. A preocupação é trabalhar. Mordaça criativa. Mordaça cansativa. Mordaça do tempo. Mordaça do lattes. Mordaça do dinheiro. Mordaça de um amor que deveria ser eterno. E assim, sonhamos com a tão esperada velhice: o descanso, a aposentadoria (que talvez não virá), o tempo, as viagens, a consolidação de quem somos, a não necessidade de aprovação dos outros. Com uma vida cerceada pela lógica manicomial, que vale ressaltar não se detém ao espaço físico dos manicômios. Vivemos esperando os novos tempos… Esses parecem se distanciar cada vez mais.

"Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e ainda assim os dedos dançavam, voavam, desenhavam palavras. Os presos estavam encapuzados; mas inclinando-se conseguiam ver alguma coisa, alguma coisinha, por baixo. E embora fosse proibido falar, eles conversavam com as mãos.
Pinio Ungerfeld me ensinou o alfabeto dos dedos, que aprendeu na prisão sem professor:
- Alguns tinham caligrafia ruim — me disse — . Outros tinham letra de artista.
A ditadura uruguaia queria que cada um fosse apenas um, que cada um fosse ninguém: nas cadeias e quartéis, e no país inteiro, a comunicação era delito.
Alguns presos passaram mais de dez anos enterrados em calabouços solitários do tamanho de um ataúde, sem escutar outras vozes além do ruído das grades ou dos passos das botas pelos corredores. Fernández Huidobro e Mauricio Rosencof, condenados a essa solidão, salvaram-se porque conseguiram conversar, com batidinhas na parede. Assim contavam sonhos e lembranças, amores e desamores; discutiam, se abraçavam, brigavam; compartilhavam certezas e belezas e também dúvidas e culpas e perguntas que não têm resposta.
Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais".

A celebração da voz humana /2- Eduardo Galeano.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

SUSpirando.

Notas sobre as notas de Larrosa com atravessamentos

Igualdade entre os sexos: a definição capitalista do feminismo