Campanha à não-virtude


Ilustração de Nana Larsson /@drawaweek

Estou tranquilamente convencida de que as coisas das quais tenho construído, problematizado, pensado, serão substituídas e minha produção ou a produção dos que pensam com proximidade ao que penso serão superadas. É para ser assim, pois não escrevo para pessoas do futuro. Me preocupo com a inteireza do agora. As doenças de agora. As questões da mulher que já existe. Também compreendo que não existe nada de novo no que falo, mas há uma novidade histórica na minha história quando percebo que existem possibilidades de convívio e transpassamento saudáveis. E, para tanto, convido todxs de maneira prática, a uma campanha de negação da virtude.
Eu não sou uma mulher virtuosa. E preciso partir da definição de Platão de virtude que o cristianismo aderiu mais tarde: eu não me encaixo nesse padrão.
Explico. Platão considera como virtude a capacidade de dominar o corpo perante as paixões. Ele separa corpo e alma em duas entidades distintas que estão em constante estado de guerra. O corpo é território das paixões, dos desejos, das entregas e do descontrole. Corpo é um estado destinado à perdição, governado pelo andar debaixo, condutor de tudo que é oposto ao céu. Compreendo como se ele delimitasse o corpo a uma caixa de Pandora: porta aberta, sem filtro, indomável, destinada para não ser aberta. Alma seria o conteúdo de dentro que não produz muito movimento perceptível, não é violenta como os desejos e tem aspirações nobres. É o conteúdo inconsciente que cada um de nós carrega, incessantes. É como um hímen branco ou transparente, do qual a gente devesse sempre cuidar para não poluir e constantemente purificar. A alma é governada pelo andar de cima e tudo dela é nobre, brando, temperado, comedido, casto. Mas, de uma maneira ou de outra, hímens são rompidos.
Parece bom ser virtuoso: quando a propaganda não é cristã e promete deus, é budista-comercial, prometendo em cinco passos a descoberta do Buda interior e emancipação transcendental. Mas, se a gente parasse pra pensar, a virtude nos priva de viver a realidade. A realidade do próprio corpo, que é o conjunto de tudo que foi fragmentado. A virtude, que nos leva ao céu do controle, é vendida como uma garantia de caráter e bondade. Mas um coração virtuoso não cumpre a função genital e não desaparece com nossa energia sexual ou com nossos desejos chamados de desejos da carne. Ele recalca. E me pergunto como a ideia de recalcar o corpo pode ser compreendida como um processo de libertação da qual todxs devemos nos esgoelar para alcançar.
Todo esse recalque, atrelado à maneira como homens e mulheres são convencionados, me coloca frente a frente com ser mulher e com minha bandeira anti-virtude. As mulheres de todo o mundo estão contaminadas com a ideia de que a virtude é uma meta. Católicas, judias, evangélicas, ateias, budistas, da umbanda ou do candomblé: todas nós estamos, em algum momento, sendo colocadas e pressionadas ao caminho da virtude. E quero explorar o significado da mulher virtuosa.
Provérbios 31, 10-31 fala, a grosso modo, que a mulher virtuosa é casta, aprovada pelo marido, amável em doçura, trabalhadora, não-preguiçosa, empreendedora, promotora do bem-estar no lar.
A definição que ouvi sobre castidade, enquanto nutria a fé religiosa no catolicismo, foi que era uma virtude dada por Deus, que permitia que o coração do homem fosse indiviso com o dele. É um valor mais profundo que regrar o tamanho das roupas e as práticas sexuais. Era um valor que dizia que o coração deveria escolher pela vontade do criador que, por ser criador, tem uma vontade melhor que a nossa. O corpo entra nesse processo quando se perpetua que ele "é vocacionado ao amor, a amar". E por amar a Deus e ao outro a gente esconde o corpo. Por amor a gente nega as paixões do corpo. Por amor a gente mantêm um papai e mamãe e louva por um “orgasmo intenso, uma relação sexual bem feita”.
A aprovação do marido, que antes era lei constitucional pra, por exemplo, sair do país ou abrir um negócio, é uma realidade condensada em outras estruturas, como a aprovação do companheiro sobre a aparência estética da companheira, a legitimação de outras relações e até a "aceitação" de um passado. Ouvi algumas vezes, em lugares distantes (recentemente de perto), que as mulheres que tiveram vida sexual ativa antes do parceiro atual devem ser gratas pelo fato de eles as “aceitarem” com suas histórias do passado. Não consigo me encaixar num lugar em que eu devo ser “aceita” por uma história. E não consigo conceber como crime, algo pejorativo ou errado, as minhas escolhas por relações tais. Não faz sentido esconder tesão quando ele é um processo natural do corpo. Então vejo, na negação dessa estrutura, uma saída cheia de defesas, solidão e um filtro que torna cada vez mais seleto o ciclo social.
Certa vez, pelo companheiro de uma amiga, fui dada como exemplo do que ela não deveria ser naquela relação. Incomodada por esse referencial, pus-me a pensar e procurar em mim as definições desse não-ser. Até agora eu estou satisfeita com o que escolhi para mim. Os apontamentos eram todos ligados a posturas feministas como reclamar da ridicularizacão de um corpo negro por ter genitálias e axilas escuras, ou de dizer que não achei graça na piada gordofóbica que foi repassada no meu direct. Para dar mais fundamentação ao não-ser, o homem em questão fez o ataque à minha vida afetiva-sexual. Daí comecei a perceber uma coisa que ainda não era óbvia para mim: a necessidade do incômodo. Este incomodo sinaliza que estou realizando algo que venho forjado para mim.
Eu me espelho em entidades religiosas que estão voltadas à emancipação feminina, como Lilith, que decidiu vagar em sua companhia porque, ao tentar regular a relação com Adão para uma maneira que também lhe fosse agradável, foi demonizada e expulsa do paraíso; ou como Circe, que se relacionou afetivamente com Ulisses porque se viu amada pelo que é, de fato. E, já naquela época, Circe sofria as trapaças masculinas por parte de Hermes, que não deixou o curso da natureza acontecer (nesse mundo dos sonhos, o encontro de um humano com um deus é marcado por alguma mudança, o que é chamado de algo natural).  A interpretação masculina do encontro com Circe é demonizada porque Circe assumidamente seduz os homens e tem a intenção de transformá-los em porcos. O que pouco se sabe é que Circe, ao transformar homens em porcos, os devolve ao princípio feminino, o que em sua compreensão se fazia necessário pela existência de um masculino repressor.  Este princípio levaria um homem recalcado à paz de viver a sua própria natureza.
O que essas mulheres fizeram, ao longo dos seus trajetos, foi tentar regular as relações que mantinham: elas não estavam confortáveis nos lugares que lhes foram designados. E designo não é destino. Não aceitar os designos parece algo nada virtuoso. E a não-virtude de  Circe e Lilith foram resolvidas com a estrutura idealizada de Maria. A porta. O sustento. A prudente. A virgem do silêncio. A grande revolucionária cristã.
Jung opina que o culto da mulher é o culto da alma. Fausto roga à sua virgem mãe que os homens “contemplem, extasiados, o olhar do salvador [...] e purifiquem suas intenções.” O Missale Romanum adjetiva: "Mater amanilis/ Mater admirabilis/ Mater boni consilii /Speculum iustitiae/Sedes sapietiae/ Causa nostrae laetitiae/ Vas spitituale/ Vas honorabile /Vas insigne devotionis/  Rosa mystica/ Turris Davidica/ Turris ebúrnea/ Domus áurea/ Foederis arca/ Jan ua coeli/ Stella matutina.” [digna de amor/ admirável/ bom conselho/ espelho da perfeição/ sede da sabedoria/ fonte de nossa alegria/ vaso espiritual/ tabernáculo da eterna glória/ moradia consagrada de deus/ rosa mística/ torre santa da cidade de Davi/ fortaleza inexpurgável/ santuário da presença divina/ arca da aliança] Num resumão rápido: essa é a imagem da alma, alcançada através da virtude. Todos esses adjetivos são atribuídos à lista que o patriarcado fez para que as mulheres tivessem sentido de existir.
Mas, Marinalva, qual é o problema da escolha por uma vida casta, da fé cristã ou da virgindade? Tenho problemas quanto ao que as estruturas dizem o que temos que ser. Tenho problemas com o apagamento de nossas escolhas. Tenho problemas com o silenciamento massivo do corpo. Tenho problemas com a condenação de alguém que não quer multiplicar a raça humana e não usa essa justificativa como fim de suas relações sexuais.
A construção da mulher ideal é uma impressão encontrada no inconsciente coletivo, a qual dá à mulher a missão de ser um vaso sagrado, com energia erótica destinada a um homem – só isso poderia validar o desejo de sexo ou o desejo de beleza, ou qualquer desejo. O desejo de ser. Ser mulher tem de ser destinado a um homem.
A mulher virtuosa “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. A mulher não-virtuosa tá às 07 da manhã dizendo a um homem que ele é capaz de mirar no vaso e, se o xixi cair no chão, ele é capaz de limpar. A mulher virtuosa é aquela da qual não se tem problemas: você vai manter uma relação cheia de amores mesmo depois de ter chifrado ela. A mulher não-virtuosa vai te mandar um áudio dizendo que amor não é motivo suficiente para se manter num lugar desconfortável. Vejo inúmeras mulheres que, motivadas pelas virtudes, estão em relacionamentos abusivos. As não-virtuosas não tem o superpoder protetor de não terem relações abusivas, mas não estão motivadas a estar nesse relacionamento por esses valores. Desmistificar motivo por motivo é um passo para uma realidade onde as mulheres tenham relações saudáveis.  Lilith escolhe, não sem luto ou dor, deixar para traz as relações que não aceitam regular um espaço bom para dois. E isso diz respeito não apenas a relações afetivas-sexuais, mas a quaisquer relação que promova o mesmo comportamento de Adão.
A campanha da não-virtude não é uma guerra declarada aos credos. É um lugar que defende a gente chamar as pessoas no probleminha, falar sobre os reais sentimentos, parar de recalcar o corpo e de separá-lo como uma parte do humano que é inferior a alma; manter a cabeça erguida ao sair pela porta, deixando para traz o peso de estar sempre por baixo. A campanha nos convida a dar passos de regresso ao nosso interior sagrado, contemplando-o como um próprio deus, sem lhes negar de realizar vontades.

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