A DOENÇA DA INTERPRETAÇÃO: A URGÊNCIA DE UM COPO-SEM-ÓRGÃOS


Por José Barbosa

Acredito que o filme Mãe de Darren Aronofsky tenha sido a última grande experiência da doença interpretativa relacionada às produções artísticas. O fenômeno é extremamente simplista. Tão simplista quanto a natureza dos argumentos e fundamentações de seus executores. É irresistível para eles injetar um sentido nas obras de arte e, pior do que isso, injetar um sentido sempre tendencioso e carregado de manobras que visam a autoafirmação e a promoção de seus próprios modelos de vida.
A raiz disso está claramente na distorção de princípios básicos que passaram a fundamentar a pós-modernidade e ainda mais a trans-modernidade. A Obra Aberta (1962), de Umberto Eco, fez ecoar no cenário da crítica artística, da semiótica e da teoria da literatura, a possibilidade de que os esquemas de construção semiótica na dimensão da arte eram abertos o suficiente para exigirem de seus receptores a atividade de sua conclusão e de seu devido encerramento. Eco precisou corrigir em seguida alguns pontos de seu magnífico trabalho, esclarecendo em Os Limites da Interpretação (1985), que as coisas não eram tão carnavalescas assim. Daí em diante, toda a obra de caráter crítico e semiótico do professor italiano, parecem estar voltadas para os esquemas e jogos da obra de arte e de como eles estão amparados em regras e movimentações que exigem (sim, exigem) que sejam seguidos caso se queira jogar o jogo da obra.
O filme Mãe promoveu no facebook uma verdadeira enxurrada de interpretações que partiam desde teorias feministas até questões escatológicas ou de teorias ufológicas. Todos se sentiam muito à vontade nesse processo quase que desesperador de dar a palavra definitiva a respeito da obra. Ao questionar algumas das pessoas a respeito de sua interpretação era comum ler coisas como: “Eu achei isso e pronto”, “Foi assim que eu percebi, cada um percebe de um jeito”, “É evidente que se trata disso”, “Não interessa o que o autor quis dizer”. O que essas pessoas não pareciam dispostas a perceber era que todas as interpretações por elas fornecidas nada mais eram do que um reflexo daquilo que elas eram, das doutrinas filosóficas que seguiam ou de suas militâncias políticas. O filme já não era algo que lhes interessasse de fato, mas sim as brechas que ele fornecia onde pudessem alojar as suas mais variadas convicções.
Esse é o clássico leitor empírico que Eco apresenta em seus Seis Passeios Pelo Bosque da Ficção (1994). Ao fim das contas, tudo que esse leitor/expectador deseja é ter as suas certezas de vida reafirmadas, garantidas e protegidas através do discurso poderoso de uma obra-prima. Ninguém parece de fato interessado em jogar o jogo estético que está sendo proposto, aceitar as regras da composição e lutar dentro do labirinto dos sentidos. Além disso, uma outra postura parece extremamente desconfortável para o universo criativo: a necessidade de fazer sentido.
Os leitores que estão fora do universo de um determinado jogo estético, se veem desesperados, inquietos, desamparados, quando não se sentem capazes de captar o ‘sentido’ de uma obra. Como se o fundamento humano, o alicerce de sua própria existência dependesse disso. E realmente depende no que diz respeito à existência simbólica desses receptores. O terrível “não fazer sentido” desloca as cargas semióticas, as construções de sentido desses indivíduos para territórios nômades, ou seja, lugares onde não é possível se fixar semioticamente. Lugares onde a atmosfera é de perpétua diluição.
E quando o sentido não é localizável não se pensa duas vezes antes de impor um sentido à obra. O crucial disso tudo é que ela, ao fim, signifique alguma coisa, traga de volta a sensação de conforto, lugar de amparo sólido, onde os pés possam se sentir firmemente colocados. Algo mais orgástico do que isso é a capacidade de enfiar na marra, dentro das fendas de uma obra, o sentido que reafirmará a existência, as convicções e os valores do receptor.
O desespero pela fala, pelo posicionamento, pela integração em um acontecimento através de uma opinião qualquer, caracteriza o fenômeno de uma época em que a possibilidades de desmoronamento de mundos em uma obra, já não interessam, são bloqueadas e esclerosadas em sua integridade. O impacto da inovação, o deslumbramento de uma composição, de um gerenciamento de forças simbólicas, simplesmente deixa de ocorrer. Não, isso não interessa para aqueles cujo desejo se concentra unicamente no fortalecimento de suas identidades. É o corpo-organizado, corpo-identitário, impregnando tudo e todos com suas cargas de sentido com o propósito de se manter estável, feliz, confortável, seguro.
Há os que se iludem com afirmações de embriaguez pretensamente vanguardista do tipo: “nada na arte faz sentido. Tudo é sem sentido. É preciso fazer sentido” alegando que a arte, desde o advento do modernismo, é uma arte sem poder de significação e que essa “falha” teria se radicalizado na contemporaneidade. Tão somente mais um exemplo de como as realidades são construídas e inventadas para depois serem perseguidas como o fundamento de todas as coisas. Tudo isso para não perceberem que, a grande problemática artística de nosso tempo é, justamente, o excesso violento de sentido. Tudo precisando significar o tempo todo. Não, a ditadura do signo ainda não passou e temos as nossas cabeças e nossos corações atados nas duas pontas dessa lógica monstruosa de significante/significado.
A urgência de um corpo-sem-órgãos é a mesma urgência de uma liberdade legitima dentro dos espaços de significação. Mas uma liberdade corajosa e guerreira que queira assumir para si toda a insegurança de um universo a-significante. Livre da busca pelo sentido, do significar-alguma-coisa é que a obra poderá ser percebida e atravessada em toda a sua intensidade. As perguntas corretas então poderão começar a ser feitas. O que atravessa uma obra? Como e a partir de onde ela se movimenta? Ao lado de quais formas de vida ela funciona? Quais fraturas e quais reconexões ela promove?
É que ao fundo de tudo está a identidade. Não será nada panfletário dizer que a identidade é a morte! A noção de corpo-sem-órgãos elaborada por Antonin Artaud prevê exatamente uma postura libertária diante das políticas do significado. É abrir o corpo, extrair dele seus filtros, desarranjar seus esquemas de significação e deixar passar, deixar passar os fluxos intensivos a-significantes. Livrando o mundo e as composições da cultura da responsabilidade infernal de terem de carregar um reflexo de nossos rostos. A responsabilidade de tudo ser espelho para que possa ser aceito e vinculado aos nossos “valores de cultura.”
­­­Substituir interpretações por leituras de intensidades e agenciamentos é modificar a nossa própria condição de leitores de mundo. Compreender que a obra não é uma casa abandonada na qual podemos nos alojar e fazer o que bem desejarmos em seus interiores. A obra é um jogo, carregado de regras e orientações que devem ser respeitados para que o próprio jogo se perpetue. Somente um corpo aberto é capaz de se desacoplar da sua identidade e perceber as orientações, os mecanismos, as propostas e os desafios. Enquanto leitor modelo, essa é a sua contribuição. Não a de inventar uma interpretação original e degolar a obra, mas criar dentro das propostas do jogo, movimentações e jogadas originais.
Por mais que Aronofsky tenha se sentido desconfortável ao ponto de dar pistas sobre em que direções a obra se movia, os zumbis da interpretação não se sentem abalados. O que fundamenta suas vidas é atravessar a civilização pregando cartazes com seus próprios rostos no maior número de muros possíveis.

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