O Discurso da Humildade



Por José Barbosa

Ouça o que o completo estranho ao seu lado tem para lhe dizer.

Supondo que os leitores dessas palavras, assim como aquele que as escreve, são filhos de uma cultura acadêmica de Humanas, vocês compreendem que chegamos a um momento da vida em que os livros nos silenciam. Os livros, os artigos acadêmicos, as palestras de especialistas nas áreas de linguística, teoria da literatura, semiótica etc. Silenciam aquela antiga maneira que tínhamos de interagir com a existência imediata das coisas. Espero que você, estudante de humanas, esteja me compreendendo pois é exatamente para você que escrevo.

Trabalhamos com conceitos. Isso é o básico. Deveríamos desde o primeiro período de nossos cursos compreender que tudo o que temos diante de nós são criações do pensamento, elaborações da inteligência. Conceitos. Há em nossa cultura humanista o pressuposto da liberdade do pensamento. É almejando esse lugar onde o individuo possa exercer plenamente a sua liberdade, que geramos os conceitos fundamentados nos princípios básicos disso que chamamos humanismo.

Perceberemos em pouco tempo (e para o bem de todos vocês eu espero realmente que em algum momento percebam isso) que estes conceitos elaborados das mais variadas áreas possíveis do conhecimento: marxismo, sociolinguística, feminismo, estudos de gênero e diversidade, análise do discurso, análise crítica do discurso, vão sendo realocadas para um dimensão bem diferente daquela que é natural do conceito. Vocês sabem que, a produção do pensamento parte do principio de que todas as conclusões serão provisórias até o momento de sua superação. As sínteses e as antíteses e o movimento perpétuo da contradição. Isso parece bonito e parece fazer de nós seres capazes de nunca nos levar a sério como os demais agentes da sociedade procuram e tentam, desesperadamente, fazer o tempo todo. Mas, isso não acontece. E aqui é o momento em que talvez você pare de ler esse texto pelo desconforto que ele começa a provocar em você. Eu te digo que, o nome desse desconforto é: reconhecimento. Eu sei que você começa a se ver, ainda de forma distorcida, nessas palavras que eu te trago. Vou entender e te perdoar caso não queira seguir para o parágrafo seguinte.

Transformamos os nossos conceitos, linhas de pensamento, escolas, doutrinas, em programações de percepção do mundo. E se isso aqui é uma conversa íntima entre estudantes de humanas, acredite, lhe direi com toda a sinceridade: essa é a maior desgraça que podemos fazer com as nossas vidas e com o mundo. O que para nós deveria funcionar como uma demonstração da inteligência humana para solucionar problemas, para questionar as bases comuns da construção humana de sentido, são convertidos em filtros que apanhamos apaixonadamente e instalamos dentro de nossas cabeças e através dos quais passamos a entender, julgar, questionar e a construir toda a realidade a nossa volta. Quando aderimos ao marxismo-leninista, não aderimos somente a uma linha de pensamento. Transformamos isso em nossa forma de ver o mundo, nossa programação. Todas as questões do mundo e, inclusive, as relações afetivas que mantemos com as pessoas e com as situações humanas, passam por essa programação e são assimiladas através da mesma. O mesmo ocorrerá com toda e qualquer escolha que façamos. Seja do anarco-feminismo ao liberalismo econômico de Edmund Burke.

É bastante provável que, nesse momento, você esteja afirmando que nada é mais natural que isso. Que todos nós somos assim, fazemos as escolhas e que somos pessoas de decisões. Talvez você esteja agora batendo no peito e orgulhosamente diga que você possui um lado, que você possui a coragem de se definir e de determinar seu caminho, ao contrário de colegas como eu que, é bastante provável, você chamará de volúvel, indeciso ou, pejorativamente de pós-pós-pós-pós-moderno.

Então eu te farei uma única pergunta: o que mudou em sua vida agora que você acredita ter um caminho e que se tornou academicamente capaz de construir a realidade através desse caminho? Não pense nas coisas que mudaram superficialmente, como seu comportamento, sua relação com determinadas formas de vida, mas pense no que mudou em profundidade, no formato de sua existência. Você perceberá que nada se alterou em profundidade. Que, assim como quando você era um membro da Igreja Evangélica Mundial do Poder de Deus, você ainda faz tudo exatamente igual: adentrou em um círculo de cultura, absorveu todo o aparato semiótico caraterístico daquele círculo, criou modelos de existência e de percepção próprios a esse círculo e agora vive, respira, julga, briga com as pessoas, e brada pela liberdade de acordo com os valores desse círculo. A única alteração feita por você foi a troca de um universo semiótico por outro. Deus-pai era o seu conceito gerenciador, a base de sua programação. O ato extremamente audacioso do qual você tanto se orgulha foi simplesmente o de aderir a um novo conceito gerenciador.

Parece complicado demais para você? Ou extremamente simplista? Não complicarei as coisas para com isso tentar criar atmosferas de seriedade acadêmica. Quero que, ao menos nos breves minutos em que lê esse texto, perceba as coisas cruamente, outra vez.

Um argumento comum que possa estar circulando na sua cabeça nesse instante é que: tudo é ideologia. Não temos pra onde fugir. Sempre teremos um conceito gerenciador, central, uma programação de base. Que tudo o que podemos fazer é escolher conceitos que sejam, minimamente, humanos, que defendam, antes de qualquer coisa, a dignidade humana. E entendo que esse argumento passe pela sua cabeça. Ele é a sua proteção. Ele é a sua melhor maneira de efender o mundo que você projetou para seu pensamento. E é isso o que fazemos o tempo todo diante do que parece a ameaça mais devastadora de todas: ver cair uma certeza. Agora perceba, principalmente você que já está fora da universidade e que, por alguma razão, resolveu passar um ou dois anos em casa, longe dos círculos de discussão, da efervescência do intelectualismo acadêmico. Perceba que você já não produz mais conceitos, pensamentos. Tudo o que você faz, tudo o que seus trabalhos fazem é defender, justificar e “fundamentar” a sua programação de base. A sua crença.

Vou te fazer uma pergunta que pode soar um tanto quanto grosseira, mas se você chegou até esse parágrafo, acredito que não irá se surpreender: quantos pensamentos você já teve na vida? Estou falando de pensamento de verdade, um pensamento novo, original, algo que modificasse e alterasse completamente as estruturas básicas desse universo semiótico no qual você resolveu se inserir. Quantos pensamentos criativos, inovadores, você já teve na sua vida? Se estiver disposto a ser sincero consigo mesmo você responderá: nenhum. E olhará em volta e se dará conta que pouquíssimas, pouquíssimas pessoas mesmo, foram capazes de ter um pensamento verdadeiramente original. Aliás, você verá que nada parece mais raro do que pensamentos originais.

Eu gostaria de nesse momento segurar em suas mãos para te dar a certeza de que estamos juntos nisso tudo: fracassamos miseravelmente. Nós e as ciências humanas fracassamos a partir do momento em que o principio básico da ciência e da filosofia são deixados de lado em nome do nosso medo infantil, o nosso desespero infantil, de não perder a segurança do mundo que criamos para nós. E isso é e sempre será uma batalha pessoal, um confronto com nossos próprios valores, inseguranças e razões que nos levam a nos apegar tão desesperadamente a um conceito ao ponto de arrancarmos dele a sua própria natureza, para fazer uso de suas feições e nos reafirmar no mundo.

Gostaria que nesse momento você tentasse imaginar a sua vida e todas as suas formas de relacionamento fora da sua programação de base. Você é ainda capaz de olhar para as pessoas e tocar suas vidas fora dos filtros que você carrega aí, dentro da sua cabeça? Suas relações amorosas, seus desafetos, suas derrotas, suas conquistas, paixões, seu sexo, todas essas coisas, você se imagina atravessando cada uma delas livre, temporariamente livre, de todo o aparato semiótico que te dá essa segurança de pertencimento a um mundo? Você é capaz de amar uma pessoa sem essa segurança do pertencimento?

Quando nos relacionamos com toda a diversidade de pessoas com as quais cruzamos durante o nosso dia, estamos nos relacionando com as pessoas, ou com as construções que temos dessas pessoas através de nossa programação? Eu te digo que estamos quase sempre optando pela segunda opção. E não é com pessoas que interagimos, mas com fantasmas. Olhamos para o outro, não na sua condição de outro absoluto, mas um outro como nós o entendemos e o queremos perceber. Uma coisa virtual que nos arremessa para a maior desgraça de nossas vidas: ver o outro como uma continuidade de nossas construções pessoas de sentido. Ninguém, fora de nós, existe verdadeiramente. Nós, filhos da cultura acadêmica de humanas, perdemos completamente o sentido do que possa realmente ser o Humano. Os artigos acadêmicos nos silenciaram.

Ouça o que o completo estranho ao seu lado tem para lhe dizer. Ele fala para o mundo. Apenas atente para o que as pessoas ao seu redor estão falando, conversando e seja capaz de perceber que uma multiplicidade de vida sem orientação alguma está acontecendo por fora, naturalmente, de tudo isso que você julga ser a programação absoluta das coisas. Não colega. Você não sabe a verdade a respeito das coisas.

Isso é o que chamo de a típica arrogância dos estudantes de humanas. Uma arrogância estúpida por não ter nada de científica e nada de filosófica. Nosso desespero por ações práticas sacrifica, quase sempre, a integridade de um pensamento que precisa, para ser legítimo, aberto para o contraditório e sempre adepto do principio de que a verdade é uma concepção frágil e vulnerável. Se você é um jovem estudante do primeiro período de Letras, por exemplo, tenha a humildade de olhar em volta, para seus colegas de classe e tenha a extrema humildade de poder, realmente, olhar para si mesmo. São tantas as certezas absolutas que levamos para dentro da sala de aula. Todo um aparato de valores que procuram nunca ser modificados, alterados, rachados ao meio, mas que querem, quase que ao preço de uma vida, serem reafirmados, confirmados, solidificados. Já iniciamos a nossa saga intelectual e acadêmica em busca de certezas.

Pode ser que a vida amanheça sobre nós.

Tudo o que estamos fazendo aqui é uma declaração de medo e de fraqueza.

Por alguma razão, muito particular para cada um de nós, tivemos o privilégio de descarregar nossas vidas dentro dos cursos de humanas, aderir ao universo cultural e teórico erguido por milhares de anos que foram capazes de nos dar essa relação de intimidade com o tempo. Perceba que, nossa maior conquista foi a dúvida. Esse instante humano em que a verdade absoluta, o inquestionável, dinamitado pela dúvida, é o instante humano em que fomos capazes de colocar os deuses para dormir. E quando o sono da divindade recaiu sobre a terra, a insegurança se apoderou da maioria de nós. Não é coragem de decisão, de escolha, de engajamento, o nosso mergulho em um conceito gerenciador. É o puro e simples medo do abandono. Medo da insegurança de não pertencer. Medo de transitar em uma realidade da qual nada se sabe e sobre a qual não se existe certeza. Medo de sermos livres.

Convertemos as nossas doutrinas e escolas em figuras paternas para às quais corremos em busca de proteção e autoafirmação. Queremos uma identidade a todo custo para que possamos dar às nossas vidas essa sensação de estarem de pé em um terreno firme. Quando um de nós exerce o que parece ser o fundamento de nossa cultura humanista e produz a crítica ao conceito de um outro colega, essa crítica é recebida como um religioso recebe aquilo que chama de profanação. Os conceitos se tornaram inquestionáveis. Claro, já não são conceitos, mas crenças.

Mas o mundo é bem mais antigo que isso.

E se percorremos os períodos, desafios e adversidades de um curso de humanas e não fomos capazes de olhar diretamente nos olhos da humildade e nos apaixonar perdidamente por ela, então não aprendemos realmente nada de importante. O exercício da dúvida incessante é um exercício de humildade. É preciso estar afogado em arrogância para dizer que “isso é a verdade”, “isso é o certo”, “esse é o caminho”, afirmações estas que não pertencem nem de longe ao que se deve entender por humanismo.

E já que você foi capaz de chegar até esses últimos parágrafo, acredito que algo de realmente humilde e sincero aproxima os nossos corações. E isso nos aproxima do fato de que: precisamos que o nosso pensamento amanheça. Como sair da infância e entender os males e as benesses de um novo estágio da vida. Um estágio da vida que seja capaz de superar nossos medos e nosso desespero pela identidade e por uma programação de base. Nossa eterna busca pela proteção paterna. A certeza. Os aparatos semióticos que nos dão essa ilusão de pertencimento. E quem sabe sermos capazes de saborear essa insegurança, essa incerteza primordial que fez da filosofia a porta escancarada para a libertação do pensamento. E assim, talvez, sermos capazes de pensar.

Não somente por uma questão de formularmos inovações conceituais, caminhos originais para as questões que competem à nossa área de conhecimento e, assim, empurrar o que entendemos como cultura, para a frente e para cima. Mas por uma questão realmente humana. Onde o outro possa finalmente assumir o seu papel em nossas vidas de realmente-outro. E a diferença, o contraditório, a insegurança da incerteza perpétua, passem a ser sinônimos de força e alegria. E este completo estranho ao nosso lado, será um estranho-de-fato. O desconhecido. Um alguém que nossa programação não tenta adaptar e reduzir aos nossos espaços simbólicos. Um alguém que poderá nos salvar de nós mesmos. Do absurdo em sermos tão limitados ao nós-mesmos.  

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