Notas sobre as notas de Larrosa com atravessamentos



Por Marinalva Gama
Primeiro, um pedido: pare para ler as palavras que vierem a seguir. É um pedido que te proporciona algo não apenas enquanto leitor, mas enquanto pessoa viva que às vezes perde a sensação de pulsação das veias. Depois: esse texto é semelhante a um ambiente atravessado por iluminação retangular e espalhada, numa espécie de fragmentos de luz. É preciso olhar o todo para construir o que eu quero dizer e o que você quer interpretar. É preciso conceituar alguns pontos – emprestados, compartilhados, atravessados – do texto de José Larrosa, o Notas sobre a experiência e o saber da experiência - traduzido por João Geraldi, e do meu próprio conceito de carpe diem, pautado na experiência, leituras diversas de Pessoa e valores adaptados do arcadismo.
O texto em questão trabalha diversas camadas que não dou conta de me ater e por isso escolho a experiência, o sujeito da experiência e o saber da experiência como um dos eixos de travessia. A experiência é um evento cheio de significado que tem como principal característica acontecer conosco. Sem essa característica, o que acontece sem acontecer conosco não é experiência, portanto, não constrói significações. Esse marcador nos leva para lugares interessantes: cada evento possui características muito especificas, nuances que provavelmente nunca mais se alinharão numa mesma rota. É o lugar que Heráclito há tanto falou e que parece se perder de sentido, exige certa concentração pra que a gente consiga ir além dos valores capitalistas que estão mascarados de “aproveite a vida”. Nós. Não entramos. Duas vezes. No mesmo rio.
Temos então a sensação de que a experiência é uma entidade que está em constante movimento. Uma entidade que corre, como um rio. E como um rio, nos atravessa. Preenche-nos. Divide-nos. Impõe-se. Não escapa. Seu constante movimento e atravessamento é uma realidade da qual não temos escolha. Está dada. Temos controle – talvez - só sobre nossas decisões. Talvez a experiência seja uma das entidades que não faz parte do grupo de Pessoa “os deuses vendem quando dão” e justamente por ser marcada por esse desagrupamento, não tem uma moeda de troca pra dar como prece e fazer com que a entidade seja. O evento é.
Ainda nas notas, Larrosa divide e conceitua diversos tipos de sujeitos e escolhe, para o sujeito da experiência, a definição de que é um sujeito disposto e disponível à passividade: "em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.” E continua, fazendo alusão à um processo de apaixonamento, “um sofrimento ou um padecimento. No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simplesmente passivo. O sujeito passional não é agente, mas paciente, mas há na paixão um assumir os padecimentos, como um viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com a mera passividade, como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão.” É aqui talvez que a gente flagre a diferença entre esse carpe diem que nos enfiam goela abaixo e o carpe diem que parte de uma disposição a sofrer a vida.

A sugestão é a seguinte: “aproveite o dia como se não houvesse amanhã", "Sorria. Escolha o bem. Usufrua. Se entregue", "Construa oportunidades", "Se preocupe com o hoje", "Não pense em crise, trabalhe.” Essas são as frases motivacionais capitalistas para nos encorajar em momentos que talvez não devamos ter coragem. Frases em que estamos enquanto sujeitos ativos, mas nem sempre dispostos.
“Meu amor o que você faria? /Se só te restasse esse dia /Se O mundo fosse acabar /Me diz o que você faria? /Andava pelado na chuva /Corria no meio da rua /Entrava de roupa no mar /Trepava sem camisinha” Lenine explora. E nós também quando estamos diante de uma Black Friday e precisamos do impulso necessário para gastar nossas economias (?) naquela máquina de waflles. A questão é: qual a probabilidade de não haver amanhã? A vida se encerrará em um único dia e sim, nós não sabemos qual. Mas, por uma lógica amparada na matemática, se você viveu até aqui, você tem dias suficientes para diminuir a porcentagem da probabilidade de morrer amanhã. Trepe com camisinha.
O real significado dado por mim mesma é o seguinte: esteja inteiro/a. Estar disponível, nesse processo de passividade, é conhecer quem se é e saber o que se sente. Tomar posse de si. Ter consciência de suas próprias emoções, perigos e vontades. Dar nome para os sentimentos presentes. Dar sentido ao que se sente. O próprio sentido. Diferenciar o carpe diem comercial. Longe de mim vender aqui qualquer coisa parecida com os oito segredos de uma vida saudável, que muitas vezes mais parece um conjunto de regras pautado em perdão cristão e alegria santa, uma espécie de “virgens prudentes”. Estou aqui em busca de propagar que a gente não deve se privar de parar para viver as coisas. Não por causa de um possível amanhã ausente, mas pelo simples fato de que precisamos paradas.
Larrosa fala de várias paradas, lentidões e suspensões: “parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” Eu acrescento minhas próprias paradas: parar para sentir raiva e para legitimar a raiva; parar para sentar, sentir a bunda no chão, espantar a porra do mosquito e matar formiga; parar para transar e sentir o sexo em todo o corpo, o movimento, a tensão e o auge; parar para sentir cheiro, sabor e temperatura de um chá verde; parar para entender como esse cara tá na presidência da República e as pessoas validam o mestrado bíblico da ministra da educação - isso me deixa paralisada; parar para peitar a fé, arrumar o cabelo e tomar um banho de Afrodite. São várias as paradas. Não porque o fim do mundo é amanhã, mas porque você tem a escolha de ser inteiro. Você pode ser inconveniente e deixar de querer agradar outra pessoa que não seja você. E ter algumas inimizades por que inconveniência hoje é conhecido como não admitir que macho escroto e gente tóxica permaneça na sua vida. Existe a possibilidade de você ter uma vida real, com uma ansiedade real, com escolhas reais e uns problemas reais. E estar ali. Consciente. Racionalizando emoções e sentindo-as. E sentindo-as lentamente. Demorando uma hora de banho. Usando meia hora para fitagem.
O saber da experiência, segundo Larrosa é “o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento.” Singelo e petulante acréscimo é: o saber da experiência é algo construído que pode ser libertador e saudável, feito para substituir os padrões de relação, comportamento, corpo, entrega e do próprio sentir. Feito pra substituir amigos descolados que dizem o que você pode ou não sentir. Feito para substituir o ex-embuste que, mesmo depois de trair, não vê motivos para não ter contato. O saber da experiência é algo feito para substituir aquele discurso de “crie a oportunidade” por “entenda o contexto do que você está vivendo”.
O saber de si (porque vira saber de nós quando a gente tem compreensão de que nossas experiências são parte de nós) é o processo que colabora para a compreensão do que nos atravessa, de como atravessamentos nos tocam e como nos colocamos diante deles. O saber é o convite para assumir e defender quem somos, porque defesa nasce de um processo produzido pela inteireza de estar presente. Dentro de si - mesmo fragmentado. E, depois de tanto sentido construído, não há como não escolher pela separação do capitalismo da máxima latina que ele se apoiou e se apoia hoje. Fugere urbem.

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